
Conheço alguém que fez muitas birras
Uma pessoa que fez birra contra o mundo. Já fez birra contra todos os cursos que tirou e os lustros em que “apenas” estudou. Contra as suas próprias decisões, as quais, durante muito tempo pareceram equivocações. Essa pessoa embirrou contra o país que a acolheu para viver, contra a realidade que criou para si e até contra as pessoas com quem decidiu rodear-se.
Chateou-se porque não houve empresas que apostassem nela a longo prazo nem reconhecessem o valor que ela achava que tinha. Uma menina mimada a achar-se a princesa do sítio…
Essa pessoa zangou-se porque não gozou de subsídios de maternidade de jeito, não foi a jantares glamourosos de empresa, nem teve prémios de desempenho. Durante anos ficou muito triste – e calou amargamente – quando foi economicamente dependente de terceiros.
Chorou (em silêncio e aos gritos) todas as vezes que se sentiu sozinha e desamparada, sem uma rede de apoio, larga e próxima, que a permitisse tirar uns dias de férias de si própria e das sua neuras. O que é pior é que neste embirranço todo, ela não soube ajudar quem realmente precisava dela… ai, ai, o egozinho magoado!
O caminho da auto-vitimizaçao é perigoso
A vitimização dissolve-nos na realidade, quando a realidade é algo bem diferente de nós. Pensamos que o mundo é simplemente aquilo que sentimos, quando, na verdade, o mundo é aquilo que é, e está-se nas tintas para o nosso sofrimento e as supostas injustiças que nos acontecem.
Sabem o que é que eu faço quando a minha filha faz uma birra porque quer algo impossível? Afasto-me ligeiramente dela e deixo-a a chorar no chão, sozinha. Aos poucos segundos de não ter a minha atenção, ela cala-se, compõe-se e vem à minha procura, a resmungar e a tentar travar o comboio da sua raiva. Dou-lhe um abraço e um beijinho, faço-lhe uma palhaçada, ela ri-se e fica tudo bem.
Nós, adultos, tal como essa pessoa minha conhecida, passamos parte da vida a fazer birras, internas, externas, contra nós próprios ou contra os outros… Mas a vida continua na mesma porque, convenhamos, ninguém e está a olhar para nós, ou se estiver, tem provavelmente as suas próprias birras para gerir.
Matar o rei na barriga
No dia em que essa pessoa sentiu (já faz alguns anos) que o seu descontentamento vital era um espectáculo decadente e egocêntrico sem pés nem cabeça, sem princípio nem fim, — e que era apenas contemplado por um reduzido público que olhava com comiseração para o seu orgulho ferido—, uma força (a realidade mais pura!) obrigou-a a erguer-se e a despir aqueles farrapos, com os quais, como um mendigo moral a mostrar as suas deficiências, esperava uma esmola para o egozinho faminto.
O show teve de acabar, sem aplausos nem fogos de artifício, sem glória alguma, sem um aspeto redentor. O golpe foi estrepitoso e a dor ainda durou-lhe uns tempos. Mas já não houve lágrimas, nem sequer raiva. Apenas a aceitação de ter de arregaçar as mangas, respirar fundo, olhar com olhos de ver, aprender com os outros e esquecer os infortúnios imaginados. Ficou o sentimento de tempo perdido nas queixinhas em vez de investido nas soluções, e o arrependimento por ter demorado tanto a tirar as lições necessárias para seguir em frente.
A vida continua, e isso, só de por si, é um presente
Surgiu então nela, ao aperceber-se de que acordava e respirava um dia após o outro, o sentimento de gratidão por estar viva. Também cresceu nela uma necessidade de conexão com mais pessoas e a vontade de contribuir para algo melhor e maior do que ela própria.
Mas antes disso teve de deixar cicatrizar totalmente a ferida do rei morto no umbigo, e teve de ensinar as costas a andarem direitas de novo (após anos de olhar para dentro), um trabalho árduo, mas ao mesmo tempo luminoso e inspirador — porque o mundo é infinitamente mais complexo, misterioso e belo do qualquer um de nós individualmente considerado.
E aos poucos, essa minha conhecida foi desbravando caminho, encontrando um propósito e criando laços, enquanto luta diariamente por desenvolver algo que deixe o mundo um pouco melhor. Também procura alguma paz interna no meio do caos da vida moderna.
Creio que muitos de nós, com o tempo e as dores, tentamos fazer de tripas coração, ganhar coragem, secar propositadamente as lágrimas que sabemos improfícuas e encontrar um lugar no mundo nos qual nos sintamos verdadeiramente em casa.
Deixar ir e aprender a voar
Essa pessoa (quem será?) olha para trás e descobre que o caminho que percorria quando fazia as suas intermináveis birras não foi na verdade assim tão duro. O trilho que se abre agora à sua frente parece bem mais difícil e complexo, e tenta percorrê-lo com um sorriso e coração ao alto.
Porque, sejam os caminhos fáceis ou difíceis, fazer birra não serve para nada. Ajudar os outros e apoiá-los nos seus desafios e nas suas conquistas, isso sim, parece aligeirar a jornada.
Conheço bem essa pessoa, e o caminho à sua frente parece-me de facto um desafio rochoso e íngreme; contudo, sei que ela é hoje tão teimosa quanto outrora foi birrenta, e que ela agora meteu na cabeça aprender a voar.
Partilha comigo: Qual foi a tua maior birra de sempre? E a última?
Aqui é a , Cristina Nunes eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.
Olá Cristina,
Que bom ter gostado do artigo, fico muito feliz.
Grata por acompanhar desse lado!
Beijinhos,
Marta